A juíza Ana Cláudia de Moura Querido, da 1ª Vara Cível da Comarca de Mogi das Cruzes, negou na sexta-feira, 5 de maio de 2023, o pedido de urgência da ex-namorada de Suzane von Richthofen, Sandra Regina Ruiz Gomes — conhecida como Sandrão — para retirar a série documental Tremembé da plataforma Amazon Prime Video. O pedido incluía também uma indenização de R$ 3.000.000,00 por danos morais. A decisão, embora não bloqueie a exibição da série, abre caminho para um julgamento mais amplo — e provavelmente longo — sobre o limite entre jornalismo, arte e direito à imagem.
Por que essa decisão importa?
Aqui está o cerne: Sandrão não pede a proibição da série por ser falsa — ela pede porque acha que ela é parcialmente verdadeira, e que isso dói mais. Segundo ela, a produção retrata a ex-namorada de Suzane como a mandante e executora do assassinato de um adolescente em Tremembé, em 2003. Mas a Justiça criminal, em sentença de 2011, a reconheceu apenas como partícipe secundária. Ou seja: ela não teria planejado o crime, nem o executado, mas teria facilitado. E isso, segundo sua defesa, faz toda a diferença. A série, com Marina Ruy Barbosa no papel principal, não apenas reconta os fatos — ela os dramatiza. E dramatizar, nesse caso, virou um problema jurídico.
“O caso dos autos esbarra no direito de liberdade de expressão”, escreveu a juíza. E não foi uma frase de efeito. Foi uma escolha deliberada. No Brasil, a liberdade de expressão é garantida pela Constituição, mas não é absoluta. Quando um documentário se baseia em fatos reais — mesmo que parcialmente —, a Justiça costuma proteger a produção, a menos que haja má-fé comprovada. A juíza não avaliou ainda se a série é mentirosa. Apenas disse: ainda não há prova suficiente para interromper a exibição.
Um processo que vai durar anos
A decisão da juíza não encerrou nada. Pelo contrário. Ela determinou que a Amazon Prime Video e a produtora da série tenham 15 dias para apresentar uma defesa formal. Além disso, foi marcada uma audiência de conciliação — algo raro em casos de direitos autorais e imagem. Isso significa que o tribunal acredita que há espaço para um acordo. Mas será difícil. Sandrão vive em Mogi das Cruzes desde 2015, no regime semiaberto. A série reacendeu a hostilidade da comunidade local. Moradores dizem que ela nunca se arrependeu. Outros, que ela foi usada como bode expiatório.
É curioso que a produção tenha sido feita com base em documentos públicos da Justiça. Não há gravações clandestinas nem fontes anônimas. Mas a edição, os ângulos, os depoimentos selecionados — tudo isso pode transformar uma verdade parcial em uma narrativa que parece absoluta. É o mesmo dilema que a Rede Globo enfrentou com o caso Suzane: a série Suzane, exibida em 2022, foi alvo de ação judicial e, em 2023, a própria Suzane venceu um processo por danos morais. A diferença? Ela foi retratada como única responsável. Sandrão foi retratada como co-responsável. E isso muda tudo.
Quem é Sandrão, de verdade?
Sandra Regina Ruiz Gomes foi a namorada de Suzane von Richthofen durante o período em que ambas estavam presas. Elas tinham relações íntimas dentro do presídio — algo que foi confirmado por depoimentos e relatórios psicológicos. Aos 24 anos, Sandrão foi condenada a 22 anos de prisão pelo assassinato do adolescente de 16 anos, cujo corpo foi encontrado em uma estrada em Tremembé. O crime foi motivado por vingança: o jovem teria se recusado a participar de um roubo planejado por Suzane. Sandrão, segundo a sentença, não disparou o tiro, mas ajudou a encobrir o crime, escondendo roupas e armas. Ainda assim, a mídia a chamou de “a outra assassina”. E a série não fez diferente.
Desde que foi transferida para o regime semiaberto, ela vive em Mogi das Cruzes com pouca exposição pública. Mas a série a jogou de volta no centro do noticiário. Ela diz que já sofreu ameaças. Que crianças na escola cantam a música tema da série. Que vizinhos a evitam. Que o nome dela voltou a ser sinônimo de “monstro”.
O que vem a seguir?
A Amazon Prime Video ainda não se pronunciou oficialmente. Mas fontes internas indicam que a empresa já planeja a segunda temporada da série, que exploraria os bastidores do caso e o impacto na vida das famílias envolvidas. Se a Justiça decidir que a série violou direitos de imagem, a Amazon pode ter que pagar indenizações, retirar o conteúdo e até cancelar novas temporadas. Mas se a liberdade de expressão prevalecer — como parece estar indo —, o precedente será forte para outras produções de true crime no Brasil.
Isso tudo acontece num momento em que o público brasileiro está cada vez mais ávido por histórias reais. Mas também mais sensível às injustiças narrativas. A série Tremembé não é só um produto de entretenimento. É um espelho. E nesse espelho, muitos veem uma mulher. Outros, um monstro. A Justiça tem que decidir: qual é a verdade que vale mais?
Frequently Asked Questions
Por que a juíza não deu urgência para tirar a série do ar?
A juíza entendeu que não há evidência clara de má-fé ou falsidade intencional na série. A liberdade de expressão, mesmo em produções de true crime, é protegida pela Constituição, e a retirada imediata só é permitida em casos de clara violação de direitos, como difamação comprovada. O processo ainda está em andamento, e a decisão foi apenas sobre o pedido de urgência, não sobre o mérito.
Qual é a diferença entre ser mandante e partícipe secundária no caso?
Ser mandante significa ter planejado e ordenado o crime — como Suzane fez. Ser partícipe secundária, como Sandrão foi classificada pela Justiça, significa ter ajudado na execução ou encobrimento, sem liderar o plano. A sentença criminal afirma que ela não disparou, não planejou e não foi a principal instigadora. A série, porém, a retrata como se tivesse sido, o que ela considera uma distorção grave.
Por que a audiência de conciliação é importante?
Ela é rara em casos de direitos de imagem e expressão, mas indica que o juiz acredita que há espaço para um acordo — como uma retratação, um adendo na série ou mesmo uma compensação financeira sem retirada do conteúdo. Isso evita uma batalha judicial longa e custosa para ambas as partes, especialmente porque a produção já foi concluída e distribuída.
O que aconteceu com Suzane von Richthofen no caso da Globo?
Em 2023, Suzane venceu uma ação contra a Rede Globo por uma série que a retratava como a única responsável pelo assassinato dos pais. A Justiça entendeu que a produção omitiu detalhes importantes sobre o papel de Sandrão e outros envolvidos, criando uma narrativa unidimensional. O caso serve de referência para Sandrão, que alega o mesmo tipo de distorção — mas com o diferencial de que ela foi condenada como partícipe, não como mandante.
A série ainda pode ser retirada do ar no futuro?
Sim. A decisão atual é apenas sobre o pedido de urgência. Se, no julgamento final, a Justiça concluir que a série difamou Sandrão ou violou seu direito à imagem, a plataforma poderá ser obrigada a retirá-la, pagar indenização ou incluir um adendo corretivo. Ainda não há previsão para o julgamento completo — pode levar de 18 meses a 3 anos.
Por que a Amazon não se manifestou ainda?
Empresas de streaming costumam evitar declarações públicas em processos em andamento, para não influenciar o tribunal ou criar pressão midiática. A Amazon já fez isso em outros casos no Brasil e no mundo. A estratégia é aguardar a defesa formal, apresentada dentro dos 15 dias, e só então decidir se vai comentar ou não.
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